Precisamos romper com as ilusões que séculos de propaganda constante incutiram em nossa psiquê. O famigerado discurso de democracia racial nos levou a um estado de letargia tal que mesmo sangrando não sentimos a dor infligida enquanto o líquido segue correndo corpo afora alimentando o parasitismo branco. Talvez a maior destas mentiras é a de que vivemos uma era de maior liberdade que nossos pais e avós. Me antecipo às inúmeras críticas lembrando que a supremacia branca, como estrutura sociopolítica e filosófico-econômica de dominação mundial vigente há milênios se mantém intacta como instituição global, apesar dos aparentes avanços.
Digo aparente porque os casos isolados de sucesso de trajetória não são suficientes para a libertação de nosso povo como um todo, apesar de tais casos serem inequivocamente necessários. Se esse é o caso, nos interpela a questão: o que torna possível um modo de subjugar inúmeros povos melaninados por milênios? E a resposta: adaptação. Esta é a principal característica a tornar possível a duração de uma estrutura tão violenta quanto a supremacia branca.
É fato que somente há alguns séculos ela se tornou efetivamente global, mas ela existe localmente há muito mais tempo Lembremos dos arianos invasores da brilhante Índia negra dravidiana de 3 mil a.C, cuja cultura foi destroçada e, como corolário disso, os Vedas foram escritos com o propósito último de cultuar a guerra de destruição daquele povo de cor.
Adaptação é o que a supremacia branca sempre fez como um organismo darwiniano que evolui e mantém-se incólume às intempéries adventícias ameaçadoras de sua sobrevivência. Desse modo, o feudalismo, o capitalismo (modo de produção consequência da supremacia branca) e a colonização do século XV, o absolutismo do século XVIII, que vemos como exemplos da mais alta selvageria são todos modos distintos de tilintar do mesmo sino cruento da supremacia branca.
Não se daria um caso diferente com nossa época em relação à qual o otimismo frente às anteriores beira a insanidade, já que nenhuma ruptura substancial ocorreu para que seja possível qualquer forma de existência coletiva livre da influência nefasta e totalmente opressora da supremacia branca.
Muito pelo contrário, as formas de controle e atuação cerceadora na vida das coletividades somente intensificaram: o dispositivo de racialidade/biopoder carneiriano, a política da inimizade mbembeziana, a racionalidade técnica habermasiana, a virtualidade onipresente, são todas regiões onde a supremacia se espraia como um vírus: pequena e sutil em sua apresentação, mas fatal em suas consequências.
Tanto mais efetivos tais mecanismos quanto mais periférico é o lugar que ocupam os países no capitalismo global. Porém, proporcionalmente a esta intensificação se deu também, e ao mesmo tempo, a sutilização desses procedimentos de controle raciais. Somente assim seria possível adentrar tão fundo na subjetividade de povos inteiros melaninados sem chamá-los à reação desestabilizadora.
Vivemos no interior da maior crueza possível a um sistema de controle racial, e, opostamente, na maior aparência de liberdade imaginável a uma época. Tal é o motivo porque os negros brasileiros ainda têm tamanha dificuldade em visualizar sua real condição: ainda somos escravos da cosmovisão branca (política, filosofia, economia, arte, religião, etc), porém ela se apresenta agora no bojo dos processos da neocolonização soft ou light, nas palavras de Nelson Inocêncio.
Não é mais possível a dominação direta de um país: ocupação de seu território por tropas militares permanentes, assassinato de milhões, destituição de seus líderes políticos por golpes armados, instauração de novas leis pela quebra do ordenamento jurídico vigente. Tudo isso agora é feito à distância e indiretamente pelos países centrais instauradores da supremacia branca, reservando aqui e ali momentos mais explícitos de redirecionamento político e econômico como se deu recentemente no Brasil.
O modo de controle operado na colonização como inaugurado pela branquitude no século XV foi-se adaptando às nossas críticas e resistência que tiveram como pontos culminantes os Quilombos no Brasil (mormente Palmares ainda no século XV), a Revolução do Haiti no século XVIII, o Movimento pelos Direitos Civis nos EUA na década de 1960, pelo fim do Apartheid na África do Sul na mesma época, e, atualmente no Brasil, as reivindicações por representatividade nas diversas mídias e acesso às universidades, movimento que tem forçado a cotização dos espaços exclusivamente brancos de antes.
Não digo com esse diagnóstico que nossos esforços por séculos têm produzido apenas suaves alterações na máquina destrutiva de corpos negros que é a supremacia branca, mas que ela ainda opera em plena potência apesar do que fizemos até aqui. Encarar a realidade nua e crua é, por inúmeros motivos, o melhor ponto de partida para a libertação de um povo em situação de escravidão. Porém, isso não precisa nos levar ao pessimismo, muito pelo contrário. Saber que nossos pais viveram épocas tão sombrias, a seu modo, quanto a atual nos inspira grandeza e esperança, perspectivas indispensáveis para nosso renascimento.
Porém, não podemos permanecer docilmente a aceitar a educação branca (que se dá muito mais através de imagens do que de textos), e por isso, patinando em devaneios como a pergunta sobre se há racismo no Brasil ou se devemos ou não nos integrar à sociedade branca. Agindo assim permaneceremos perdidos enquanto povo, isto é, sem capacidade de viver como uma comunidade que possui valores-base comuns, que compartilha da mesma cosmovisão, que, sabemos de nossa origem, é comunitarista, e se opõe frontalmente ao individualismo branco.
A colonização soft oriunda da supremacia branca dá presentes aos seus dominados (carros, tvs, celulares, computadores e demais dispositivos), e concomitante com isso retira deles a energia de viver alimentando-os com vegetais envenenados; ela oferece maior expectativa de vida, mas nos leva ao suicídio aos 30 por esgotamento emocional; ela promete vida feliz a cada novo produto que você vê a cada passo na rua ou novo site na internet, te fazendo esquecer que amanhã mesmo esses produtos não serão mais vendidos; ela te apresenta milhões de comprimidos num único lugar, capazes de sarar qualquer doença, mas oculta o fato de que tocar a terra, tomar sol, beber água limpa e pertencer a um povo seria quase o suficiente para viver bem.
Queremos ser livres, e sabemos que só o seremos enquanto povo. Então que o façamos cientes do tamanho das correntes que ainda nos prendem a um modo de vida alienígena para o que somos em essência. Sigamos conquistando aos poucos, a cada pequeno degrau, ocupando espaços secularmente brancos, forçando sua retirada pela competência que nos é peculiar, mas olhando o horizonte bem além, único lugar onde podemos ser plenamente o que nascemos para ser: deuses desabrochados, despertos.
Nota do autor:
Tomo pertencer aqui no sentido da cosmovisão dos povos Zulu da África do Sul. Pertencer é se sentir parte de um povo e agir de acordo com esse pertencimento, respeitando as ordens do amor, que são: pertencimento – todos têm o direito de pertencer, inclusive os criminosos; hierarquia – os mais velhos doam, os mais novos recebem; equilíbrio – o grau de doação entre iguais deve ser o mesmo. Esse conhecimento ancestral foi roubado pelo alemão Bert Helinger (como desde Platão eles fazem), que passou mais de 16 anos estudando entre os Zulu, e hoje é transmitido sob o nome de terapia sistêmica fenomenológica ou familiar.
Referências:
MOORE, Carlos. Racismo e Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. cap. 1.
CARNEIRO, Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como Fundamento do Ser. Feusp, 2005. (tese de doutorado).
MBEMBE, Achile. Políticas da Inimizade. Trad: Marta Lança. Lisboa: Antígona: 2017.
SILVA, Nelson Fernando Inocêncio da. Consciência Negra em Cartaz. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2001. p. 20.
Como o fez Leopoldo II da Bélgica no Congo. A reiterada lembrança desse massacre faz justiça à memória das vítimas.
Texto de autoria de David Almeida – Filósofo
teste
4 respostas
Obrigada pelo texto!
Excelente texto.Precisa ser divulgado aos quatro ventos. Só o caminho do conhecimento nos libertará.
Ao contrario de Confúcio, aqui a imagem não vale mais que as palavras, elas se equivalem.
Ótima matéria, David. Parabéns!!!
Vc comentou sobre Bert Hellinger, por favor onde conseguiu esta informacao que ele aprendeu ” terapia sistemica ” do povo Zulu.
Agradeco desde de já.
Obrigado